Um propósito muito bem blindado foi o que levou a dupla de ciclistas de Caxias do Sul (RS), Cesar Mincato e Tiago Fiamenghi, pedalar de Oceanside, na Califórnia, até Annapolis, em Maryland (EUA).
Após passarem pelo duríssimo terceiro dos nove dias de Race Across América (RAAM), os dois ciclistas da equipe Bike & Wine, Cesar Mincato e Tiago Fiamenghi, tiveram uma certeza de que “a partir de agora, nada mais vai nos parar”. E não parou mesmo. Dois ciclistas, que não são atletas profissionais cumpriram os 5.000 km que separam Oceanside, na Califórnia, de Annapolis, no estado de Maryland, em 9 dias 7 horas 8 minutos, entrando para o seleto grupo das pessoas que completaram a prova de ciclismo mais difícil do mundo.
Ciclismo? Não. “Não é uma prova de ciclismo, é uma prova de vida. Quem vai pelo ciclismo não termina”, afirma Cesar, empresário de 35 anos. E como se faz para terminar então? Pelo propósito. Propósito esse que serviu como uma bússola para que eles vencessem a dificuldade do terceiro dia e vissem o projeto não ser comprometido quando integrantes da equipe já pensavam em antecipar as passagens aéreas para o Brasil. “O nosso propósito apareceu com força já antes da prova. Nós sabíamos que precisávamos de dois milagres. O primeiro era chegar na largada e o segundo, em Annapolis”, conta Tiago, designer de 52 anos.
O primeiro impasse era o econômico. O dólar estava cotado na casa dos R$4 e, a 60 dias da prova, faltava 70% do dinheiro para cobrir o custo do projeto. O Bike & Wine Team foi a última equipe a se inscrever. O segundo desafio era vencer as barreiras físicas. Eles não são atletas de performance, não tinham 100% do tempo para se dedicar aos treinos e à organização da viagem. “Nós compramos as passagens faltando três semanas. Nosso chefe de equipe dizia para fazermos no ano que vem, mas a gente acreditava em milagres”, relembra Tiago.
Eles foram para os Estados Unidos. E eles chegaram em Annapolis. E então começaram os nove dias de prova. “Nós éramos a única equipe sem motorhome, por causa do custo. Tínhamos três vans. E isso faz muita diferença. Tomamos um banho em nove dias, dormimos mal, pedalamos com sono, caímos, enfrentamos 50 ºC e 0 ºC”, conta Cesar. “O corpo e a mente são levados ao limite, e se você não souber com clareza o porquê você está lá, você desiste”, defini.
“Se você pensar que são 5 mil km em nove dias, você desiste”
Os dois ciclistas que não são atletas profissionais viram atletas profissionais ficarem pelo caminho. E quase ficaram também. O momento mais tenso começou no segundo dia e ganhou força no terceiro. “No segundo dia, no deserto da Califórnia, o Cesar teve uma queda de energia. Eu tinha parado há pouco tempo para o meu descanso e precisei voltar pra bike, ele estava pálido, irreconhecível”, lembra Tiago. “Eu comecei a sentir a visão branquear, faltava ar e eu parei. A equipe estava na frente, voltou. Eu simplesmente parei, travei”, diz Cesar. O motivo? A alimentação errada. Nesse momento, Cesar entendeu um recado do seu corpo: “Eu precisava comer muito mais, então eu passei a confiar na equipe. Eu comia até me embugar (encher a barriga), comia muito durante a prova. E não tive mais esse problema”.
Ouvir o corpo e a mente é um ensinamento que eles já trouxeram da primeira viagem do Bike & Wine, entre Porto Alegre e Montevidéu. Na RAAM, tudo foi ainda mais intenso. Como se não bastasse a queda de energia de Cesar, em seguida veio o tombo grave de Tiago - no início do terceiro dia. Além de múltiplas escoriações, a equipe notou que o capacete havia rachado. Por isso, ele precisou ir para o hospital. Cesar assumiu a bike por seis horas. “Eu estava começando a descer uma ladeira íngreme e a bicicleta tremeu na frente. Eu freei, achei estranho, mas segui. Eu sentia muito frio no corpo todo e as minhas mãos estavam travando. Eu estava mais embalado quando a bicicleta tremeu mais uma vez na frente e eu percebi que eu ia cair. Foi como se eu estivesse em câmera lenta, eu percebi que tinha perdido o controle e ia cair”, recorda o ciclista.
Pela estrada, naquele exato momento, passava um americano que é enfermeiro e o ajudou. Logo a equipe chegou e então Cesar assumiu a bike após ter terminado o seu trecho há pouco mais 10 minutos. Foram seis horas direto de pedal enquanto Tiago se recuperava, porque aquele era um momento crucial para o objetivo de terminar a RAAM. Havia um corte na prova, se eles não passassem até o prazo, seriam desclassificados. “Eu dizia pra equipe cuidar do Tiago, se eu precisasse pedalar 24 horas, eu iria pedalar. A gente sempre teve uma confiança muito grande um no outro. Isso é fundamental”, revive Cesar. E Tiago acrescenta, “eu sentia vontade de descansar mais, de dormir mais, mas isso significava que o Cesar ia descansar menos, então quando era a minha vez de pedalar, eu subia na bike e pedalava”. Foram 70 trechos cada um. E assim eles fatiaram a RAAM. “Assim é também na vida, divida o problema. Se você pensar que são 5 mil km em nove dias, você desiste”, ensinam.
Depois do tombo, ainda viria mais uma grande dificuldade. Tiago havia perdido a confiança em si, tinha medo de descer as montanhas e não conseguir frear e, no primeiro pedal depois de ser atendido no hospital, congelou de frio. Teve que entrar na van. “Foi o único momento em que ficamos nós dois na van. A gente só se falava nas trocas de pedal e dizíamos: bora, bora”. Naquele momento, a equipe acreditava no fim do projeto. Falava em pedalar para curtir ou até em antecipar o retorno ao Brasil. Mas Cesar e Tiago tinham um propósito. E não deixavam que a mente os desviasse disso. “Nós pensávamos assim: o que eu preciso fazer pra chegar a Annapolis? Está com frio? Esquenta, a equipe saiu e comprou roupas. Está com medo de descer montanha? Então faz as subidas’. E assim, resolvendo os problemas, nós chegamos”.
Nem só de perrengue foram os nove dias. Há muito ensinamento nessa jornada
No caminho, eles viveram, também, momentos sublimes. Conseguiram curtir um pouco. Mas a dificuldade foi a principal companheira. Pouco mais de uma semana depois da chegada, eles ainda não estão recuperados fisicamente. Sentem insônia, a sensibilidade nas mãos não voltou. O corpo foi levado ao limite. E a mente também. “Nós tínhamos um propósito muito maior do que apenas chegar a Annapolis. Nós temos o Bike & Wine, ele é o nosso propósito de vida e é maior do que a RAAM. A prova está dentro dele e não o contrário”, explica Cesar. Foi o valor do BW que encantou a equipe de nove pessoas que os acompanhou nos Estados Unidos. E sem eles, nada teria acontecido. “Nós tínhamos o menor orçamento, mas a melhor equipe da RAAM”. A confiança era tanta, que Tiago conta que chegou um determinado momento dos nove dias em que ele não tinha mais autonomia para dormir ou comer. Fazia exatamente o que a equipe me dizia. “Eu só tinha autonomia pra pedir para ir ao banheiro. O resto eu nem sabia o que estava acontecendo, me davam a comida e eu comia. Eu fazia tudo como eles diziam”, garante. Eles eram profissionais, estavam contagiados pelo mesmo objetivo e foram tão responsáveis quanto os ciclistas pela chegada a Annapolis.
Um ensinamento pode resumir toda essa experiência: a bicicleta é só a ferramenta que nós escolhemos usar. Você pode usar outra. O importante é você saber que se tiver um propósito muito verdadeiro, você consegue fazer tudo o que você quiser.
Alguns números:
5.000 quilômetros no total
nove dias, sete horas e oito minutos de prova
550 km por dia – equivalente à distância entre Caxias do Sul (RS) e Curitiba (PR)
70 trechos de pedal cada um
53 mil metros de elevação
355 cidades
12 estados
Perfil do Tiago no Strava: https://www.strava.com/athletes/14269407
Perfil do Cesar no Strava: https://www.strava.com/athletes/13270790
Instagram do B&W: www.instagram.com/bikeewine/
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