A Marcha do Sal, de Érico Hiller, reúne imagens produzidas durante peregrinação a pé por 400 quilômetros pelo oeste da Índia.
Lançamento será dia 17 de novembro, sábado, no Rhino Antiquário em Gramado
A alma de um país milenar e as ideias de um dos maiores líderes do século 20 emergem das imagens e reflexões que compõem A Marcha do Sal, do fotógrafo Érico Hiller (Vento Leste, 252 págs). O livro registra a peregrinação de 400 quilômetros que Hiller realizou, em novembro de 2017, refazendo passo a passo o trajeto da Marcha do Sal, protesto pacífico contra a coroa britânica comandado por Mahatma Gandhi em 1930, com repercussão mundial. Revelando ao mundo o interdito que proibia os indianos de extrair seu próprio sal e os obrigava a comprá-lo dos ingleses, a marcha se tornaria emblemática do ideal de resistência não-violenta de Gandhi, além de pedra fundamental no processo de independência da Índia, submetida ao jugo colonial inglês desde o século 18.
Projetos documentais baseados em experiências pessoais, que conjugam curiosidade jornalística e “subjetividade assumida”, são o foco de Hiller há dez anos. “Não são testemunhos factuais, mas interpretativos, expressivos. Correta ou não, minha perspectiva fica visível neles”, explica o fotógrafo. Para construir A Marcha do Sal, ele partiu do ponto inicial do protesto, Ahmedabad, e atravessou o calorento estado de Gujarate até chegar a Dandi, no oceano Índico. No trajeto de um mês, feito integralmente a pé, revisitou cenários chave da marcha, entrevistando herdeiros de participantes e testemunhas, e revivendo passagens marcantes. Mais do que tudo, deixou-se impregnar pela paisagem humana do caminho e pelo sentido do pensamento de Gandhi, cujos escritos estudou por anos.
O epíteto Mahatma, que significa “a grande alma”, virou o prenome oficial de Mohandas Karamchand Gandhi, que formou-se em direito em Londres e viveu na África do Sul até 1914, quando voltou à Índia natal e abraçou a luta pela emancipação do país. Influenciado por pensadores do século 19, defendia o princípio da não-violência, da desobediência civil e da resistência pacífica, uma política que denominava satyagraha – literalmente, a força da verdade. Incentivando boicotes, marchas, jejuns e outras ações não violentas, exortava a “velha Índia” a “apontar uma saída para um planeta sedento de paz” e “farto de ver correr sangue”. Gandhi seria assassinado em 1948, apenas um ano após a conquista da independência da Índia, em um crime político ligado à violenta oposição interna entre muçulmanos e hindus.
Para colocar-se no encalço das ideias e dos feitos do líder pacifista, Hiller caminhou sem planos, parando em pequenos hotéis, onde houvesse, pedindo pouso em casas, quando era preciso e, eventualmente, dormindo ao relento, sob as estrelas. A máxima gandhiana do “menos é mais” se impôs ao fotógrafo desde o começo: “Eu procurava caminhar com o mínimo de peso possível; meu equipamento se resumia à minúscula câmera sem espelho que eu trazia pendurada. Usei poucas lentes; uma ia no equipamento, a outra ia em uma bolsa que trazia na lateral do corpo. Fui, literalmente, deixando peso e excessos pelo caminho, absorvendo toda a concussão moral e física que uma longa caminhada nos impõe.”
O brilho de Gandhi
Contrapondo mais de 70 imagens tomadas no percurso e breves textos reflexivos, o livro estabelece ligações entre a história e a filosofia de Gandhi e a paisagem e o povo indianos, revelando tanto a rica herança cultural do país quanto algumas das mazelas que seus governos jamais puderam erradicar. A hospitalidade dos moradores dos vilarejos por onde Hiller passou, e que disputavam a honra de hospedá-lo – oferecendo deferências como uma comida menos apimentada –, além da forma como as aldeões cuidam uns dos outros em situações de pobreza, tramando uma delicada teia de proteção e solidariedade, lembram o fotógrafo de estar “em uma terra onde o brilho de Gandhi ainda cintila no coração dos homens”.
Outras imagens e passagens aludem à situação ainda subalterna, quando não perigosa, da mulher indiana, a quem Gandhi acreditava caber um papel proeminente na luta pela independência e no estabelecimento de uma sociedade pacífica. “As mulheres deveriam ensinar aos indianos como se viver melhor, a partir dos preceitos da não-violência”, afirma Hiller. “Gandhi acreditava que a mulher deveria elevar sua participação nacional e sair do confinamento que muitas eram submetidas às quatro paredes de casa.”
Em mais de um momento do trajeto, o fotógrafo se depara com o drama continuado dos indianos sem casta, ditos intocáveis: excluídos pelo hinduísmo, que lhes atribui faltas cometidas em outras vidas, eles não devem ser tocados. A discriminação de base religiosa foi fortemente combatida por Gandhi, que rebatizou a casta harijan, ou filhos de Deus. Hiller retrata uma mulher do bairro dos intocáveis de Dabhan, que Gandhi visitou, na passagem da marcha pela cidade, e onde fez questão de beber água do poço, para escândalo de parte dos presentes. Em Gajera, Hiller fotografa a imensa árvore sob a qual, em outra parada da marcha, o Mahatma permaneceu sentado em silêncio até que os intocáveis locais fossem admitidos entre os ouvintes. “Mais que uma árvore, ela é um templo vivo para a humanidade. Um ícone de libertação, resiliência e inclusão social”, escreve o fotógrafo.
Outras imagens eloquentes ajudam a reconstruir o ideário de Mahatma Ghandhi em A Marcha do Sal, como a da roda de fiar. “Ele começou a produzir sua própria roupa em 1921, tendo dedicado rigorosamente uma hora diária para fiar pelo resto de sua vida”, conta Hiller. “Não há beleza numa roupa se ela causa fome e infelicidade”, dizia Gandhi. “A roda de fiar pode restaurar a glória intocada da Índia. É como o Sol, ao redor do qual gira toda a economia de nossos vilarejos. Ela oferece uma ponte de ouro entre ricos e pobres”. Em Sajod, uma cabra que acaba de dar à luz e suas crias que tentam se equilibrar sobre quatro patas pela primeira vez dão forma a outra fala recorrente de Gandhi: “Ele dizia que, quanto mais indefesa for uma criatura, mais direito ela tem à proteção contra a crueldade humana”.
Jornada de descobertas
O pensamento de Mahatma Gandhi também ilumina as ideias de Hiller sobre o que é a fotografia autoral e qual papel ela pode desempenhar em um mundo saturado de imagens. “Gandhi dizia que toda a humanidade é uma só família. Eu acredito que a fotografia aproxima as pessoas e nos faz despertar para este grande senso de fraternidade. Fotografar nos dá uma perspectiva privilegiada. Às vezes eu me sentia como um astronauta, que vê a Terra de cima, admirando-a enquanto flutua sem gravidade. Olhar de fora é uma boa oportunidade para compreender melhor nosso papel quando estamos dentro, inseridos em dor, desespero e fúria”, ele escreve. “A fotografia não se encerra apenas no que vemos. Mais importante ainda, mostra o que sentimos, aspiramos e descobrimos. Fotografar é um ato de doação e humildade.”
Resultado de uma jornada árdua de descoberta e evolução pessoal, A marcha do sal revisita o pensamento de um pacifista inigualado no momento em que a ideia de comunicação não violenta ganha força, converte-se em base de movimento e passa a representa, para muitos, uma saída possível para os impasses contemporâneos. “Por um lado, o sonho gandhiano foi sublimado”, diz Hiller no livro. “A roda de fiar foi substituída por imensas indústrias; o Partido do Congresso assolou-se em corrupção; a não-violência foi varrida do país no dia de 1974 em que a Índia fez o seu primeiro teste nuclear. No entanto, esse homem não é esquecido jamais. Algumas ideias que na época poderiam parecer demasiadamente avançadas renovaram-se e ganharam ainda mais sentido. A sustentabilidade, a economia de recursos primários e as plantas medicinais parecem hoje tendências sem volta.”
Érico Hiller nasceu em Belo Horizonte (MG) e radicou-se em São Paulo, onde se formou em comunicação social pela ESPM. Começou a fotografar em 2003; a partir de 2008, desenvolve uma série de ensaios documentais, sempre em torno de temas que lançam luz sobre os efeitos devastadores dos modelos econômicos e comportamentais humanos hegemônicos. O primeiro, Emergentes, transformado em livro em 2008, enfoca as enormes diferenças sociais geradas pelo ideal desenvolvimentista nos países “em desenvolvimento”, como Argentina, Brasil, China, Índia, México e Rússia. Ameaçados, de 2012, retrata regiões de grande riqueza natural que correm grandes riscos, no Ártico, na Tanzânia, na Etiópia, nas Maldivas e na Mata Atlântica; e A Jornada do Rinoceronte, de 2016, denuncia a caça ilegal do grande animal no continente africano. As imagens de Érico Hiller foram vistas na exposição individual Diários de Viagem, realizada na Leica Gallery, São Paulo (2016), e em revistas como National Geographic, Marie Claire e Rolling Stone. Na OneLapse, ele guia grupos de entusiastas e profissionais de fotografia em viagens de aprendizado e imersão cultural em países como Myanmar, Laos e Etiópia, além de ministrar palestras baseadas em seu trabalho documental.
A editora
A editora Vento Leste se dedica a conceber e viabilizar projetos editoriais especiais envolvendo fotografia contemporânea e fine art. Fruto da paixão combinada por livros e fotografia, foi criada pela empresária Monica Schalka e tem base em São Paulo. Entre outros, publicou Visões de um poema sujo –com fotografia de Márcio Vasconcelos, curadoria de Diógenes Moura e texto de Celso Borges, sobre poema de Ferreira Gullar; Às vezes água, às vezes terra, de Du Zuppani e Miguel Bichir; MAGNA, de Cristiano Xavier; e O Livro dos Monólogos (Recuperação para Ouvir Objetos), de Diógenes Moura.
Divulgação: Aline Viezzer
Fotos: Érico Hiller