Entrevista Rui Spohr

Rui Spohr é um ícone vivo da moda gaúcha. O estilista, que em 2016 completa 60 anos de carreira, tem uma colaboração fundamental na alta costura e na história da moda no Rio Grande do Sul. Entre os muitos vestidos feitos por ele, ao longo de todos estes anos, destacam-se os de casamento das misses Maria Ieda Vargas, Miss Universo em 1963, e de Deise Nunes Ferst, Miss Brasil em 1986, símbolos da beleza nacional. Neste bate-papo ele nos conta um pouco dos bastidores e das histórias mais interessantes dos vestidos que marcaram a sua trajetória. Também fala sobre seu processo de criação dos vestidos, da trajetória da marca e de como vê a moda gaúcha e brasileira hoje.

Acompanhe os principais trechos da entrevista exclusiva concedida à colunista da Revista Onne& Only, a primeira disponibilizada no novo espaço do estilista, uma casa elegante localizada ao lado do antigo atelier, que mantém o mesmo charme e sofisticação de Rui.

A viagem de navio
“O que acho mais interessante da minha história é a garra que temos quando jovens. Aos 20 anos eu já gostava de moda e já estava fazendo moda, desenhava. E queria ir adiante: Rio de Janeiro, São Paulo, Paris. Mas não conhecia nada fora daqui, não sabia o que havia. Eu lia nas revistas, sabia que existiam escolas de moda no exterior e queria estudar nelas. Antes de ir para Paris, meu pai faleceu e comuniquei minha mãe e meus irmãos mais velhos que iria estudar na capital francesa e que usaria minha parte da herança. Eles concordaram e me deram força. Foi então que embarquei pela primeira vez para Paris. Fui de navio, e a viagem durou 11 dias. Não se falava em ir de avião, só em ir de navio, e a viagem era ótima. Foram 11 dias maravilhosos, me diverti muito”.

Em Paris pela primeira vez
“Saindo do Rio de Janeiro, chegamos em Cannes (França) e, ainda no navio, precisávamos avisar o que estávamos fazendo em Paris. No grupo havia muitas meninas com bolsa para estudar francês, e fiz amizade com elas. Pegamos um trem para Paris, à noite, e quando chegamos na cidade, por volta das 6 horas, me despedi dos colegas de navio e de repente estava sozinho, em uma das estações em Paris, com uma mala e uma sacola. Tive muita coragem, a gente aos 22 anos tem tesão para fazer essas coisas. E eu fui, e quando parecia que tudo ia dar errado, deu tudo certo. Mas eu nunca desanimei. Fui para ficar oito meses e fiquei três anos sem voltar ao Brasil. Já tinha perdido a vontade de voltar, há muita gente boa trabalhando em Paris”.

A carta de apresentação
“Assim que cheguei em Paris fui procurar um amigo de um amigo brasileiro. Levei uma carta de apresentação dele. Passava pouco das 6 horas, estava escuro. Peguei minha mala e fui ao hotel, sem conhecer nada. Tinha apenas o nome da rua. Ao chegar, fui bem recebido. Deixei tudo lá e fui procurar a pessoa que poderia me ajudar. Era por volta das 8 horas, chovia muito, era outubro. Estava frio, e fui caminhando. Mas eu tinha tanto entusiasmo, tanta garra, tanta coragem. Hoje não faria mais, e nem com 30, 40 anos. Então fui procurar o endereço. Era de um brasileiro de Flores da Cunha (RS), que estava morando em Paris. E nosso amigo em comum morava em Porto Alegre. Bati no hotel Saint Piérre, e o homem custou para retornar. Depois de um tempo me atendeu, perguntou o que eu estava fazendo. Disse que estava ali para estudar moda. “Estudar o quê?”, perguntou novamente. “Moda”, respondi. “Ah, isso não existe. Volta daqui a quatro ou cinco horas que vejo o que posso fazer, caso contrário tu voltas para o Brasil”. E esperei. Ele então me recebeu, disse que conhecia alguém que trabalhava em um escritório de importação e exportação do Brasil e que, por sua vez, conhecia todo mundo. Mas alguns dias depois ele se mudou e perdi o único contato que tinha em Paris. Mesmo assim escrevi uma carta para minha mãe dizendo que estava tudo bem. Naquele tempo só havia comunicação por navio, a carta levava cerca de 15 dias para chegar em Porto Alegre”.

O encontro
“Ao chegar ao Correio para enviar a carta, aflito por não saber o que fazer, um homem me parou e perguntou se eu era brasileiro. Respondi que sim, que estava em Paris para estudar moda. E ele me disse que não existia moda, mas que me daria o endereço de um homem muito conhecido e que ajudava todo mundo. “Pega o endereço dele, é este aqui”, disse. Quando me virei, o homem desapareceu. Uma coisa realmente fantástica. Foi um anjo da guarda. Acho que este acontecimento foi a chave da minha chegada em Paris. E, realmente, depois de uns dois ou três dias, eu já estava na escola, alegre e feliz. E então que falo, fui para ficar oito meses, um ano letivo, de outubro a junho, e fiquei três anos. Foi ótimo, Paris é maravilhosa, seus ateliers de arte, os museus. Mas depois dos três anos, percebi que poderia fazer a diferença voltando ao Brasil. E então retornei a Porto Alegre”.

Os contemporâneos
“Yves Saint Laurent e Karl Lagerfeld estudaram na mesma escola que eu, a Chambre Syndicale de la Haute Couture Parisienne, dois anos depois de mim. Era a única escola de moda que existia realmente. Eles venceram um concurso de criação de vestidos e se tornaram famosos. E foi isso que aconteceu. Quer dizer, hoje, eu estou com mais de 80 anos, Karl tem quase a mesma idade e também segue trabalhando. Outro designer famoso ainda na ativa é Giorgio Armani. Às vezes, me chateio com indiretas sobre seguir trabalhando. Não menosprezem as pessoas que têm mais idade, nós chegamos até aqui e realizamos muito. Vocês estão apenas no começo. Mas desejo muita sorte a todos, porque é maravilhoso fazer moda”.

A moda
“É uma coisa fantástica fazer moda, lidar com coisas bonitas, cores, luzes e efeitos. Isso enche a alma da gente. E ainda digo a todos os estudantes de moda que sigam realmente procurando fazer bons estágios, onde realmente aprendam, mesmo que na marra. De uma maneira geral, é difícil se manter na profissão, mas é possível e muito gratificante”.

A hora de parar
“Estou numa idade em que, às vezes, me pergunto se já está na hora de parar. Será que tenho o suficiente para sobreviver nos anos em que ainda vou viver? Será que ainda posso ser útil? Mas a família e amigos me dizem para continuar. Meu coração e minha garra são os mesmos. E se me perguntam qual foi o momento melhor da minha vida digo que foi Paris. E o segundo mais importante na minha vida é a minha mulher, Dóris. Devo tudo à garra dela, à vivência dela, ao nosso amor e à nossa vida. A Dóris é a grande responsável de eu estar aqui até o momento”.

Estilo
“Estilo é o teu jeito de ser. Estilo é você, a maneira que se expressa. Estilo é o que tu pensas, o que tu falas. Estilo, dentro da moda, dentro da pintura, dentro das artes, é a tua imagem. Estilo é a maneira que tu te vestes. Isto é estilo. Estilo é a personalidade, é a maneira de ver e de ser, no cotidiano. E continuar com esse estilo evoluindo através dos anos. É preciso criar o estilo próprio, adaptado, e saber da moda como um todo. E nesse todo deve haver o teu espaço, o teu estilo, a tua verdade. Isso que é importante”.

Fotos: Marcelo Tovo